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Quarenta e Quatro por Quarenta e Quatro

Atualizado: 13 de jul.


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A ideia da peça surgiu durante uma visita a Gilberto Mendes, num momento em que a conversa derivou para especulações sobre obras para piano a quatro mãos. Assunto motivado pela presença ali do Duo Gastesi-Bezerra, formado pelo casal Estibaliz Gastesi, espanhola, e Márcio Bezerra, brasileiro, que estavam em Santos em visita aos pais do pianista, natural da cidade.


A certa altura do papo, já no campo de elucubrações, sem preocupação com rigores, a imaginação em jogo chegou à ideia de uma composição "a duas cabeças", uma coautoria, e "a quatro mãos", para dois pianistas no mesmo piano.


Diante da receptividade do duo, que se mostrou interessado e disposto em tocar a peça cogitada, os compositores se dispuseram ao desafio de escrever.


Foi traçado então uma espécie de plano composicional. Seria uma peça feita por dois compositores, em que cada um escreveria sua parte sem conhecimento do que o outro estaria fazendo. Como parâmetros de sincronia entre as partes, ficou estabelecido um andamento constante, de 60 batidas por minuto, e a divisão da tessitura do piano em dois registros: das 88 teclas, um ficaria com 44 notas a partir da mais grave, e outro com as 44 notas a partir da mais aguda. a região inferior (do centro para o grave) e a região superior (do centro para o agudo), cada qual sob responsabilidade de um autor, que escreveria o que lhe desse na cabeça, independente (ou sem saber) do que o outro estaria escrevendo na região oposta. Na divisa territorial, as vizinhas notas mi e fa da escala central.

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Haveria necessidade de se pensar numa estrutura que permitisse uma sincronia mínima dos dois e, para conferir um mínimo de unidade formal, que se adotasse uma mesma linha composicional, para o que Gilberto Mendes sugeriu fossem seguidos princípios seriais, mas sem a rigidez da técnica dodecafônica e seus desdobramentos.


Foi feito um esboço inicial dessa estrutura, mas o projeto não prosperou, a peça não chegou a ser desenvolvida. Com a morte de Gilberto Mendes, a folha com as anotações foi para o baú de esboços, o abrigo das pendências permanentes.






















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Mas, como essa caixa de rabiscos costuma ser revirada de tempos em tempos, sempre que alguma antiga ideia emerge das profundezas desse almoxarifado, em busca dos detalhes que ficaram na penumbra das inúmeras camadas do baú, uma vez ou outra a visão da proposta rascunhada de Quarenta e Quatro por Quarenta e Quatro parecia instigar a retomada da ideia, talvez numa concepção diferente, ou reconfigurada.


Um belo dia, então, depois de várias oportunidades, uma concepção levou à extração daquela proposta do velho baú. A concepção parecia contornar o principal obstáculo à retomada da peça: a questão de como elaborar a parte sob responsabilidade do compositor ausente. A solução encontrada era desenvolver o processo serial da composição com fragmentos de suas obras, ou seja, séries formadas por materiais preexistentes. Para contrabalançar a ideia, a parte do parceiro seria então construída também com materiais próprios, preexistentes.


Outra questão se impunha. Como desenvolver a peça com a flexibilidade formal sugerida para o procedimento serial, ou seja, sem a rigidez das técnicas dodecafônicas, conforme dito anteriormente? E a solução aqui veio através dos procedimentos aleatórios sugeridos por uma das peças de Gilberto Mendes, Blirium C-9.


Não houve na época aquela fase decisiva das "mãos à obra". E a obra permaneceu no esboço.


Um segundo momento de lampejo sobreveio, passados alguns anos. A lembrança de uma conversa com o pianista Antônio Eduardo, em que revelara um comentário de Gilberto Mendes sobre a peça A Quem Quer Todas As Notas. Esta foi escrita em 2003 para a série Bossa Nova, projeto sugerido pelo compositor e realizado pelo pianista, mediante encomenda a vários autores, para que cada um escrevesse uma composição alusiva ao gênero musical brasileiro gerado em fins dos anos de 1950. Gilberto, que não chegou a compor para a série, havia comentado que, se o fizesse, provavelmente seria algo na linha daquela peça, que consiste numa formulação conceitual tendo como referência uma composição icônica do gênero, o Samba De Uma Nota Só.


O samba, cuja letra contrapõe, estrutural e metaforicamente, o tema da constância de uma nota em contraposição ao uso abundante de notas, iniciava a última estrofe com a frase "E quem quer todas as notas". O tema de A Quem Quer Todas As Notas brincava com a ideia original, como se oferecesse, a quem quisesse, uma canção em tese com todas as notas, as oitenta e oito notas do piano, mas... uma de cada vez.


Outra lembrança que se juntou a essa, vinculada também à figura de Gilberto Mendes, foi uma parceria que não chegou a acontecer devido ao que poderia ser denominado um conflito territorial de campo artístico. Em fins de 2012, logo após completar 90 anos, Gilberto tropeçou em Mel, sua gigante canina refestelada no chão da sala de estar, caiu e saiu do tombo com um problema ósseo, que o levou a um retiro hospitalar. Na Santa Casa de Santos, ficou sensibilizado e agradecido pelo atendimento que recebeu das enfermeiras. Pensou em escrever uma canção, tipo marchinha de carnaval, enaltecendo a dedicação e paciência das funcionárias da saúde. Falando comigo a respeito, me convidou a escrever uma letra para ele musicar.


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